MINHA ALMA COLONIAL
Poucas idéias estão mais presentes no imaginário social brasileiro, do que a noção segundo a qual os escravos criaram o sincretismo religioso como forma de manter seu culto ilegal às divindades africanas fora do alcance dos olhos de seus senhores.
Ainda hoje, 120 anos após a abolição do regime de trabalho escravo, essa noção romântica vem sendo amplamente difundida nas salas de aula e compartilhada de maneira quase unânime por aqueles que discorrem sobre o assunto, mesmo nos cursos de história ou das ciências sociais.
Noção romântica, porque ela nos deixa subentendida certa malandragem, certa sabedoria esperta, que nos deixa de imediato solidarizados com aqueles que supostamente foram mais inteligentes que seus opressores. Ela nos diz que os escravos se preocupavam em disfarçar um culto onde não haviam imagens a serem cultuadas, mas não precisavam criar nenhuma alternativa com relação aos sons e às músicas, tão fundamentais aos cultos de Inquices, Voduns e Orixás.
O que infelizmente não fica à mostra, é a possibilidade de que certa malandragem poderia ter sido empregada pelo “outro lado”, por aqueles que se dedicaram a colonizar almas, mentes e corpos. Aqueles que detinham poder sobre a vida e a morte e que decidiam quem fazia, ou não, parte da espécie humana.
Mais de 20 milhões de almas foram saqueadas do continente africano, por uma “máquina” colonial alimentada por cana-de-açúcar. Por números da época, entretanto, seriam menos, já que aos negros se permitiu ter apenas meia alma, a qual recebia logo no embarque um nome cristão de batismo e a garantia de que o céu lhe receberia se não agüentasse a viagem de mais de 3 meses amarrado ao porão fétido de um barco de madeira de cerca de 25 metros.
A forma como vemos o sincretismo não deixa espaço para a perversidade, só para as boas intenções. Não nos permite perceber que o mesmo método catequista foi utilizado em outras partes do planeta ou que ele ainda o é, nas entranhas da Amazônia. Nossas mesmas aulas de história nos falam de como o Deus Tupã foi sincretizado com o Deus dos jesuítas.
Certamente há a possibilidade de que os seres humanos tenham criado soluções semelhantes a problemas parecidos. Mas seria justo supor que um escravo de Cuba e um da Bahia tenham pensado parecidos, quando havia instituições presentes nos dois lugares com muito mais tempo, recursos e interesses do que ambos?
Ainda assim, a semelhança do método possui uma marca registrada. Quando se tenta achar a lógica que regeu a correspondência entre as divindades cristãs e africanas, percebemos que há sempre uma semelhança biográfica entre os santos católicos e os mitos africanos. Aqueles que operaram o sincretismo estavam “letrados” nos dois mundos. Só assim poderíamos ter Santa Bárbara com Iansã, no Brasil, e com Xangô, em Cuba.
A grande beleza escondida no sincretismo, contudo, ainda está por se revelar. Ele é resultado de uma lógica cartesiana, capaz de crer na submissão dos “fracos” pelos “fortes”, mas que não consegue entender ainda a extensão, possibilidades e significados para força.
A grande maioria das divindades africanas são elas mesmas sincréticas. São cultuadas por sociedades que nunca tiveram problemas em reconhecer a força de seus inimigos e dos deuses que os protegiam. Resultam de uma lógica que sempre vê seu oposto como humanamente viável. Onde as conquistas dos “outros” podem ser compreendidas e apreendidas para serem aplicadas entre “nós”.
A beleza do sincretismo está, portanto, contida na máxima verdade de que ele surgiu como sentença de morte, mas se tornou fonte de vida. Antes de enfraquecer ele criou fortaleza a um povo que acredita em deuses que sabem dançar.
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